GEOMETRIA SAGRADA
- Renan Batista
- 28 de out. de 2016
- 17 min de leitura

"O que é Deus? É longitude, largura, altura e profundidade" São Bernardo de Claraval, De la consideración
"Geometria" significa "medida da terra". No Antigo Egito, do qual a Grécia herdou este estudo, o Nilo transbordava nas suas margens cada ano, alagando a terra e traçando a metódica linha das parcelas e zonas de cultivos. Esta inundação anual simbolizava para os egípcios o retomo cíclico do primigênio caos aquoso, e quando as águas se retiravam, começava a tarefa de redefinir e restabelecer as lindes. Este trabalho se chamava geometria e era considerado como o restabelecimento do princípio da ordem e da lei sobre a terra. A cada ano, cada zona medida era um pouco diferente. A ordem humana era mutável e isto se refletia no ordenamento da terra. O astrônomo do templo poderia dizer que certas configurações celestes tinham mudado e que. portanto, a orientação ou o posicionamento de um templo deveria ajustar-se a isto. Assim, o traçado das parcelas sobre a terra tinha, para os egípcios, uma dimensão tanto metafísica, como física e social. Esta atividade de "medir a terra" tornou-se a base de uma ciência das leis naturais, tais como se encarnam nas formas arquetípicas do círculo, do quadrado e do triângulo.
A geometria é o estudo da ordem espacial mediante a medição das relações entre as formas. A geometria e a aritmética, com a astronomia, a ciência da ordem temporal através da observação dos movimentos cíclicos, constituíam as principais disciplinas intelectuais da educação clássica. O quarto elemento deste importante programa em quatro partes, o quadrivium, era o estudo da harmonia e da música. As leis das harmonias simples eram consideradas leis universais que definiam a relação e o intercâmbio entre os movimentos temporais e acontecimentos celestes por um lado, e a ordem espacial e o desenvolvimento sobre a terra, por outro lado.
O objetivo implícito desta educação era permitir que a mente se tornasse um canal, através do qual a "terra" (o nível da forma manifestada) poderia receber o abstrato, a vida cósmica dos céus. A prática da geometria era uma aproximação à maneira como o universo se ordena e se sustenta. Os diagramas geométricos podem ser contemplados como momentos de imobilidade que revelam uma contínua e intemporal ação universal, geralmente oculta à nossa percepção sensorial. Desta forma, uma atividade matemática aparentemente tão comum pode tornar-se numa disciplina para o desenvolvimento da intuição intelecutual e espiritual.
Platão considerava a geometria e os números como a mais concisa e essencial, e portanto ideal, das linguagens filosóficas. Mas não é senão em virtude de seu funcionamento num certo "nível" de realidade que a geometria e os números podem se tornar veículo para a contemplação filosófica. A filosofia grega definia esta noção de "níveis" — tão útil no nosso pensamento — distinguindo o "tipo" do "arquétipo". Segundo as indicações que podemos ver nos relevos murais egípcios, alocados em três registros — o superior, o médio e o inferior — pode definir-se um terceiro nível "ectipo", situado entre o "arquétipo" e o "tipo".
Para verificar como funciona cada um deles, tomemos como exemplo algo tangível, como a brida de um cavalo. Esta brida pode ter um determinado número de formas, materiais, tamanhos, cores, aplicações, e todas elas são bridas. A brida assim considerada é um tipo: existe, é diversificada e variável. Mas em outro nível, subsiste a ideia ou a forma da brida, o modelo de todas as bridas. Esta ideia não é manifestada, pura ou formal, e este é o ectipo. Acima deste ainda está o nível arquétipo, que é o do princípio ou poder-atividade, isto é, um processo que a forma ectípica e o exemplo do tipo de bria apenas representam. O arquétipo tem a ver com os processos universais ou modelos dinâmicos que podem ser considerados independentemente de qualquer estrutura ou forma material. O pensamento moderno tem difícil acesso ao conceito de arquétipo, porque as línguas europeias requerem que os verbos ou a ação se associem a substantivos. Assim, não dispomos de formas linguísticas aptas a imaginar um processo ou uma atividade que não tenha um veículo material. As culturas antigas simbolizavam esses processos.
A geometria como prática contemplativa é personificada por uma elegante e refinada dama, pois as funções geométricas, enquanto atividade mental intuitiva, sintetizadora e criativa, mas também exata, associa-se ao princípio feminino. Mas quando estas leis geométricas vêm a ser aplicadas na tecnologia da vida diária, são representadas como princípio masculino e racional: a geometria contemplativa se transforma em geometria prática.
Atribui-se a Pitágoras ter sido o primeiro a estabelecer a relação entre os quocientes numéricos e as frequências do som. Aqui, ele aparece experimentando sons de sinos, vasilhas com água, cordas esticadas e flautas de diferentes tamanhos; seu homólogo hebreu, Jubal, utiliza martelos de pesos diferentes sobre uma bigorna. Todas as proporções numéricas para determinar os sons correlatos a uma escala musical fazem parte ou são múltiplos dos números das progressões da tabela da Lambda
A Aritmética também é personificada por uma mulher, mas não tão ilustre e nobre em seus adereços como a Geometria, o que indica talvez simbolicamente que a geometria era considerada um nível superior de conhecimento. Em suas pernas (que simbolizam a função generativa) aparecem duas progressões geométricas. A primeira série, 1,2,4,8, desce pela perna esquerda, associando os números pares com o lado feminino, passivo, do corpo, A segunda série, 1,3,9,27 desce pela perna direita, associando os números ímpares com o lado masculino e ativo; uma associação que remonta a Pitágoras, que denominou os números ímpares como masculinos C 08 pares, femininos. Os gregos chamaram estas duas séries de Lambda, e Platão na sua obra Timeo as utiliza para descrever a alma do mundo (veja-se a página 83). A esquerda da mulher, está sentado Pitágoras utilizando um ábaco para seus cálculos. Neste sistema, a notação dos números continua dependendo de sua disposição espacial. Boécio está sentado à direita, utilizando a numeração algébrica para um moderno sistema de cálculo em que a notação numérica se transformou num sistema abstrato, separado e independente de sua origem geométrica.
Os antigos astrônomos designavam o movimento e a posição dos corpos celestes mediante a notação angular. As diferentes posições angulares do sol, da lua, dos planetas e das estrelas estavam relacionadas com as mudanças cíclicas do mundo natural, tal como as fases da lua, das estações, das marés, o crescimento das plantas, a fertilidade humana e animal, etc. Era o ângulo o que especificava as influências das configurações celestes nos acontecimentos da Terra. (Neste sentido, podemos advertir a raiz comum das palavras ângulo e anjo). Atualmente a recente ciência da heliobiologia verifica que a posição angular da lua e dos planetas afeta às radiações eletromagnéticas e cósmicas que têm um impacto na Terra, e, consequentemente as flutuações nesses campos afetam a muitos processos biológicos.
Processos puros e eternos como deuses, isto é, poderes ou linhas de ação, através das quais o espírito se concretizava em energia e matéria. A brida se relaciona, pois, com a atividade arquetípica mediante a função de alavanca: o princípio de que as energias são controladas, especificadas e modificadas mediante os efeitos da angulação.
Assim, verificamos com frequência que o ângulo — fundamentalmente uma relação entre dois números — teria sido utilizado no simbolismo antigo para designar um grupo de relações fixas que controlam sistemas complexos ou modelos interativos. Desta forma, os arquétipos ou deuses representavam funções dinâmicas que vinculavam entre si os mundos superiores da interação e o processo permanente, com o mundo real dos objetos concretos. Verificamos, por exemplo, que um ângulo de 60° tem propriedades estruturais e energéticas muito diferentes das de um ângulo de 90° ou de 45°. Da mesma forma, a ótica geométrica revela que cada substância reflete a luz de forma característica, em seu próprio ângulo individual, e é este ângulo que nos mostra nossa definição mais precisa da substância. Além disto, os ângulos dos padrões de união entre as moléculas determinam em grande parte as qualidades das substâncias.
No caso antes visto da brida, esta relação ou jogo angular se manifesta na relação entre o bocal do freio e a mandíbula do cavalo, ambos controlados pela relação angular entre o antebraço e o bíceps do cavaleiro. Partindo do nível do arquétipo ou ideia ativa, o princípio retirado do exemplo da brida pode ser aplicado metaforicamente a muitos campos da experiência humana. Por exemplo, quando São Paulo descreve o processo de autodisciplina, mediante o qual uma intencionalidade superior procura controlar a natureza "animal" inferior, diz que a partir do momento em que alguém é capaz de pôr freio à boca, já pode dominar o resto da natureza. Mas enquanto a nível arquetípico esta imagem pode ser metafísica e poeticamente expansiva, também encontra sua representação geométrica exata no ângulo. É o ângulo exato do braço em relação com o ângulo da brida o que controla a energia do cavalo.
Funcionando, portanto, a nível arquetípico, a geometria e os números descrevem energias fundamentais e casuais em sua dança entretecida e eterna É este modo de ver que subjaz sob a expressão de sistemas cosmológicos e configurações geométricas. Por exemplo, o mais reverenciado de todos os diagramas tântricos, o Sri Yantra, representa todas as funções necessárias ativas no universo, mediante nove triângulos entrelaçados. Desaparecer num diagrama geométrico desta índole é entrar numa espécie de contemplação filosófica.
Para Platão, a realidade consistia em essências puras ou ideias arquetípicas, das quais os fenômenos que percebemos são apenas pálidos reflexos (a palavra grega "ideia" traduz-se 8 também como "forma"). Estas ideias não podem ser percebidas pelos sentidos, mas apenas pela razão pura. A geometria era a linguagem que recomendava Platão como o modelo mais claro para descrever esse reino metafísico. "Acaso não sabeis que (os geômetras) utilizam as formas visíveis e falam delas, embora não se trate delas, mas destas coisas de que são um reflexo, e estudam o quadrado em si e a diagonal em si, e não a imagem deles que desenham?
E assim sucessivamente em todos os casos... O que realmente procuram é poder vislumbrar estas realidades que apenas podem ser contempladas pela mente." PLATÃO, A República, VII.
O platônico Thomas Taylor considera nosso conhecimento da geometria como inato em nós próprios, adquirido antes de nascer, quando nossas almas estavam em contato com o reino do ser ideal. "Todas as formas matemáticas têm uma primeira permanência na alma; de tal modo que antes do sensível, ela contém números com sua dinâmica própria; figuras vitais antes das aparentes; razões harmônicas antes de coisas harmonizadas e círculos invisíveis antes dos corpos que se movem em círculos." THOMAS TAYLOR. Platão o demonstra em Ménon, onde faz com que um jovem servente sem instrução resolva intuitivamente o problema geométrico de duplicar o quadrado. O Sri Yantra se desenha a partir de nove triângulos, quatro com a ponta para baixo e cinco com a ponta para cima, formando assim 42 (6 X 7) fragmentos triangulares ao redor de um triângulo central. Provavelmente, não exista nenhuma outra série de triângulos entrelaçados com uma integração perfeita. 9 Para o espírito humano, confinado num universo em movimento, na confusão de um perpétuo fluxo de acontecimentos, circunstâncias e desconcerto interno, procurar a verdade sempre significou procurar o imutável, chame-se a isto ideias, formas, arquétipos, números ou deuses. Entrar num templo construído em sua totalidade conforme as proporções geométricas invariáveis é entrar no reino da verdade eterna. Diz Thomas Taylor: "A geometria permite ao seu devoto, como uma ponte, franquear a obscuridade da natureza material, como se fosse um mar obscuro, para as regiões luminosas da realidade perfeita." Contudo, não se trata em absoluto de um acontecimento automático que ocorra apenas pegando um livro de geometria. Como diz
Platão, o logo da alma deve ser gradualmente reavivado pelo esforço: "Que prazer me dais. os que pareceis preocupados porque eu vos imponha estudos pouco práticos. Não é próprio unicamente dos espíritos medíocres, pois todos os homens têm dificuldades para se persuadir de que é através destes estudos, utilizados como instrumentos, como se purifica o olho da alma. e como se propicia que um novo fogo arda nesse órgão que estava obscurecido e como extinguido pelas sombras de outras ciências, um órgão mais importante de conservar do que dez mil olhos, pois é o único com o qual podemos contemplar a verdade." A República, VII (citada por Teón de Esmirna — século II — em sua obra Matemáticas úteis para entender Platão) A geometria trata da forma pura. e a geometria filosófica reconstrói o desenvolvimento de cada forma a partir de outra anterior. E uma maneira de tornar visível o mistério criativo essencial. A passagem da criação à procriação, da ideia pura, formal e não manifestada para o "aqui em baixo", o mundo que surge desse ato original divino pode ser tratado mediante a geometria, e ser experimentado através da prática da geometria; este é o propósito dos ''Cadernos práticos" deste livro. Inseparável deste processo é o conceito do número e, como veremos, para os pitagóricos, o número e a forma a nível ideal eram um só. Porém neste contexto, o número deve ser entendido de maneira especial. Quando Pitágoras dizia: "Tudo está ordenado ao redor do número", não pensava nos números cm sentido enumerativo ordinário. Além da simples quantidade, a nível ideal os números estão impregnados por uma qualidade, de tal maneira que a "dualidade", a "trindade" ou a "tétrada". por exemplo, não são simples compostos de 2. 3. 4. ou 6 unidades, mas sim um todo ou uma unidade em si mesmas, cada uma delas com suas correspondentes propriedades. O "dois", por exemplo, considera-se uma essência original da qual procede e em que se fundamenta na sua realidade o poder da dualidade. R.A. Schwaller de Lubicz propõe uma analogia mediante a qual se pode entender este sentido universal e arquetípico do número. Uma esfera giratória é-nos apresentada com a noção de um eixo. Imaginemos este eixo como uma linha ideal ou imaginária que atravessa a esfera. Não possui existência objetiva, e contudo não podemos No século XII, a arquitetura da ordem cistercense obtém sua beleza visual mediante desenhos que se ajustam ao sistema proporcional da harmonia musical. Muitas das abadias daquele período eram conchas acústicas que transformavam um coro humano em música celestial. São Bernardo de Claraval, que inspirou esta arquitetura, disse a respeito da sua concepção: "Não deve haver decoração, apenas proporção." 10 Aqui se mostra Cristo utilizando um compasso para reconstituir a criação do universo a partir do caos primordial. Este ícone se pode entender também como uma imagem da autocriação individual, pois aqui, como em muitas representações medievais de Cristo, o simbolismo tântrico é evidente. Cristo segura o compasso com a mão sobre o centro vital chamado a chakra do coração, e partindo deste centro organiza o tumulto das energias vitais contidas nos chakras inferiores, indicadas no corpo mediante os centros no umbigo c nos órgãos genitais. A geometria é simbolizada aqui por sua vez no sentido individual e universal e enquanto instrumento, mediante o qual o reino arquetípico superior transmite ordem c harmonia ao mundo vital e ao energético. senão estar convencidos da sua realidade; e para determinar qualquer coisa relacionada com a esfera, tal como sua inclinação ou sua velocidade de rotação, devemos nos referir a este eixo imaginário. O número em seu sentido enumerativo corresponde às medidas e movimentos da superfície exterior da esfera, enquanto o aspecto universal do número é análogo ao princípio imóvel, não manifesto nem funcional de seu eixo. Levemos agora nossa analogia ao plano bidimensional. Considerando um círculo e um quadrado e dando o valor 1 ao diâmetro do círculo e também ao lado do quadrado, então a diagonal do quadrado sempre será (e esta é uma lei invariável) um número "incomensurável" ou "irracional". Dizemos que este número pode se prolongar num número infinito de decimais sem nunca atingir uma resolução. No caso da diagonal do quadrado, esse decimal é 1,1442..., e se denomina raiz quadrada de dois ou 2 . Com o círculo, se dermos o valor de 1 a seu diâmetro, a circunferência será sempre do tipo incomensurável, 3,1316...que conhecemos como o símbolo grego π , pi. O princípio continua o mesmo no caso inverso: se damos o valor fixo e racional 11 12 1 à diagonal do quadrado e à circunferência do círculo, então o lado do quadrado e o raio do círculo tornam-se do tipo incomensurável ou "irracional: 1 / 2 e l / π . É exatamente neste ponto onde se separam as matemáticas quantificadas e a geometria, porque numericamente nunca poderemos conhecer exatamente a diagonal do quadrado ou a circunferência do círculo. Claro, podemos arredondar depois de um dado número de decimais e tratar estes números como qualquer outro número, contudo nunca poderemos reduzi-los a uma quantidade. Em geometria, contudo, a diagonal e a circunferência, consideradas no contexto da relação formal (a diagonal relativamente ao lado, a circunferência relativamente ao diâmetro) são realidades perfeitamente identificáveis e evidentes em si mesmas: 1: 2 e 1 : π , O número se considera como uma relação formal, e este tipo de relação numérica se denomina função. A raiz quadrada de 2 é o número funcional do quadrado, e pi é o número funcional do círculo. A geometria filosófica —e por conseguinte a arte e a arquitetura sacras— têm muito a ver com essas funções "irracionais", pela simples razão de que demonstram graficamente um nível de experiência que é universal e invariável.
As funções irracionais (que consideraremos mais exatamente como suprarracionais) são a chave que abre a porta de uma realidade superior do número. Demonstram que o número é acima de tudo uma relação: quaisquer que sejam as quantidades que se apliquem ao lado e ao diâmetro, a relação continuará sendo invariável, já que na essência, este aspecto funcional do número não é grande, nem pequeno, nem infinito ou finito: é universal. Assim, no conceito de número há um poder definido, finito e particularizam-te, e também um poder sintetizador universal. A um, poderia se denominar o aspecto exotérico ou exterior do número; e ao outro, o aspecto funcional, esotérico ou interno. Vejamos os quatro primeiros números primários por esta ótica. O número UM pode se supor que defina uma quantidade: por exemplo, uma maçã.
Mas em outro sentido, representa perfeitamente o princípio da unidade absoluta, e como tal foi frequentemente utilizado, como o símbolo que representa Deus. Enquanto manifestação formal, num sentido pode representar um ponto — foi-lhe dado o nome de número "pontual", o hindu ou semente do manda-la (símbolo gráfico do universo) hindu — e, em outro sentido, pode representar o círculo perfeito. DOIS é uma quantidade, mas, simbolicamente, representa, como já temos visto, o princípio da dualidade, o poder da multiplicidade. Ao mesmo tempo, tem seu sentido formal na representação de uma linha, na medida em que dois pontos definem uma linha. TRÊS é uma quantidade, mas como princípio, representa a trindade, um conceito vital que veremos mais adiante. Seu sentido formal é o do triângulo, que é formado por três pontos. Com o três, dá-se uma transição qualitativa dos elementos abstratos do ponto e da linha ao estado tangível e mensurável denominado superfície. Na Índia, o triângulo era chamado a Mãe, pois é a membrana ou canal de nascimento através do qual todos os poderes transcendentes da unidade e sua divisão inicial numa polaridade devem passar para entrar no reino manifesto da superfície. O triângulo atua como mãe da forma. Mas três é apenas um princípio da criação, que forma a passagem entre os reinos transcendente e manifesto, enquanto o QUATRO representa pelo menos "a primeira coisa nascida", o mundo da natureza, porque é o produto do processo procriador, isto é, a multiplicação 2 x 2 = 4. Como forma, quatro é o quadrado e representa a materialização. A universalidade do número pode ser vista em outro contexto mais físico. Sabemos pela física moderna que desde a gravidade até ao eletromagnetismo, passando pela luz, o calor e inclusive o que acreditamos ser matéria sólida em si, a totalidade do universo perceptível é composta por vibrações, percebidas por nós como fenômenos de ondas. As ondas são padrões puros temporais, isto é, configurações dinâmicas compostas de amplitude, intervalo e frequência, e apenas podem ser definidas e entendidas por nós através do número.
Assim, todo o nosso universo é redutível ao número. Todo o corpo vivo vibra Este desenho caligráfico zen japonês representa harmoniosamente a "criação". mediante a simples progressão da unidade do círculo, passando pelo triângulo, até à forma manifesta do quadrado. fisicamente, toda a matéria elementar ou unanimada vibra molecular ou atomicamente, e todo o corpo vibrante emite um som. O estudo do som, tal como o intuíram os antigos, proporciona uma chave explicativa para a compreensão do universo. Temos observado já que os antigos conferiam grande importância ao estudo da harmonia musica], relacionado com o estudo das matemáticas e da geometria. A origem desta tradição está geralmente associada a Pitágoras (560-490 a.C.) e sua escola, mas Pitágoras pode ser considerado como uma janela através da qual podemos vislumbrar a qualidade do mundo intelectual de uma tradição mais antiga: a do Próximo c a do Extremo Oriente. Nesta linha de pensamento, o som de uma oitava (uma oitava é. por exemplo, dois dós subsequentes na escala musical) era o momento mais significativo de toda a contemplação. Representava o princípio e a meta da criação. O que acontece quando fazemos soar a oitava perfeita? Dá-se uma coincidência imediata e simultânea que tem lugar em vários níveis do ser. Sem nenhuma intervenção do pensamento, nem de conceitos, nem de imagens, reconhecemos imediatamente a recorrência do tom inicial na forma da oitava. E a mesma nota, mas diferente: é a consecução do círculo, uma espiral desde uma semente a outra semente nova. Este reconhecimento intemporal e instantâneo (mais preciso do que qualquer reconhecimento visual) é universal entre os seres humanos. Mas também aconteceu outra coisa. O guitarrista toca uma corda. Em seguida, solta esta corda deixando o dedo exatamente em seu ponto médio. Toca a metade da corda. A frequência das vibrações produzidas é dupla em relação à dada pela corda inteira, e o tom se eleva de uma oitava. A amplitude da corda foi dividida em dois e o número de vibrações por segundo se multiplicou por dois; 1/2 criou o seu reflexo oposto. 2/1. Assim, neste momento, um acontecimento abstrato e matemático está vinculado exatamente a uma percepção física e sensorial; nossa resposta direta e intuitiva a esse fenômeno sonoro (a oitava) coincide com sua definição concreta e medida. Daí que experimentemos nesta percepção auditiva uma inter-relação entre o interior e o exterior, e podemos generalizar a resposta para evocar a possibilidade de uma fusão entre os reinos intuitivo e material, os reinos da arte e da ciência, do tempo e do espaço. Pode dar-se outro destes momentos no mundo criado, mas os pitagóricos não o conheciam, tampouco nós. É o espírito essencial da percepção da harmonia, e para os pitagóricos era o único momento sobrenatural verdadeiro: uma experiência tangível da simultaneidade dos opostos.
Considerava-se como a verdadeira magia, um autêntico mistério omnipresente. Era graças à geometria que os pitagóricos se mantinham em equilíbrio nesta transição 13 única em que a vibração ouvida se toma visual; e sua geometria, conforme veremos, explora as relações da harmonia musical. Embora inter-relacionados em sua função, nossos dois principais sentidos intelectuais, a visão e o ouvido, utilizam nossa inteligência em duas formas completamente distintas. Por exemplo, com nossa inteligência ótica, para formar um pensamento, compomos uma imagem em nossa mente. Por outro lado, o ouvido utiliza a mente numa resposta imediata e sem imagem, cuja ação é expansiva e evoca uma resposta dos centros emotivos.
Atualmente, esta faculdade emotiva e sensível ao som costuma associar-se a experiências subjetivas, emocionais, estéticas ou espirituais. Tendemos a esquecer que também intervém quando a razão percebe relações invariáveis. Portanto, quando centramos nossa experiência sensorial em nossa capacidade auditiva, podemos dar-nos conta de que é possível ouvirmos uma cor ou um movimento. Esta capacidade intelectual é muito diferente da "visual", analítica e sequencial que normalmente utilizamos. E esta capacidade intelectual, associada ao hemisfério direito do cérebro, a que reconhece padrões no espaço, ou conjuntos de qualquer tipo. Pode perceber simultaneamente os opostos e captar funções que perante a faculdade analítica parecem irracionais. E de fato 0 complemento perfeito da capacidade visual e analítica do hemisfério esquerdo, já que absorve ordens espaciais e simultâneas, enquanto a faculdade racional "esquerda" é mais adequada para captar a organização temporal e sequencial. O aspecto esotérico e funcional do número, por exemplo, se apreenderia através da faculdade do "hemisfério direito", enquanto o aspecto exotérico e enumerativo do número é apreendido pelo "esquerdo". Esta qualidade intelectual inata assemelha-se muito ao que os gregos denominavam a razão pura, o que na índia denominavam o "coração-mente". Os antigos egípcios tinham para isto um lindo nome: a "inteligência do coração", e atingir esta qualidade de entendimento era a meta implícita da vida. A prática da geometria, embora faça uso também da faculdade analítica, utiliza e cultiva este aspecto auditivo e intuitivo da mente.
Por exemplo, alguém experimenta o fato do crescimento geométrico através da imagem do quadrado cuja diagonal forma o lado de um segundo quadrado. Trata-se de uma certeza sem razão aparente, captada pela mente a partir da experiência real de executar o desenho. A lógica está contida nas linhas do papel, que não se podem desenhar de outra forma. Como geômetras. equipados apenas com compassos e réguas, entramos no mundo bidimensional da representação da forma. Estabelece-se um vínculo entre os reinos do pensamento mais concretos (a forma e a medida) e os mais abstratos. Na busca das relações invariáveis que governam e inter-relacionam as formas, pomo-nos em ressonância com a ordem universal. Ao reproduzir a gênese destas formas, tentamos conhecer os princípios da evolução. E desta maneira, ao elevar nossos próprios padrões de pensamento a estes níveis arquetípicos, propiciamos às forças destes níveis a penetração na nossa mente e no nosso pensamento.
Nossa intuição se anima, e talvez, como diz Platão, o olho da alma possa ser purificado e de novo aceso, "pois só através dele podemos contemplar a verdade". "Os números são as fontes da forma e da energia no mundo. São dinâmicos e ativos, inclusive entre eles... quase humanos em sua capacidade de influência mútua." (Téon de Esmirna). Os números, segundo a visão
Pitagórica, podem ser andróginos ou sexuados, procriadores ou gerados, ativos ou passivos, heterogêneos ou promíscuos, generosos ou avaros, indefinidos ou individualizados. Têm suas atrações, suas repulsas, suas famílias, seus amigos; fazem contratos de casamento. São de fato os verdadeiros elementos da natureza. As ferramentas da geometria e o número representam os meios com os quais se atinge o conhecimento do espaço e do tempo, tanto exterior, como interior. Estes instrumentos, então utilizados por arquitetos e filósofos, se tornaram hoje, a partir da "idade da razão" em ferramentas do engenheiro. 14 Um dos pressupostos fundamentais das filosofias tradicionais reside, ao que parece, no propósito de que as faculdades intelectuais do homem seja o de acelerar nossa própria evolução superando as limitações do determinismo biológico que constrangem todos os outros organismos vivos. Os métodos como a yoga, a meditação, a concentração, as artes, o artesanato, são técnicas psicofísicas para aproximar-se desta meta fundamental. A prática da geometria sagrada é uma destas técnicas essenciais de auto realização. Cada um dos diagramas dos quadrados pequenos representa um sistema ou técnica diferente de pensamento para a compreensão do mundo e suas estruturas. A primeira tarefa do aspirante espiritual que encara os variados caminhos contemplativos é harmonizar as cinco constituintes universais que compõe seu corpo (terra, ar, fogo, água e prana). Seu conhecimento claro dos mundos exterior e interior depende do acordo harmonioso que estabeleça entre estes estados elementares em seu próprio corpo e estes mesmos elementos na natureza. Cada cosmograma geométrico é concebido para assisti-lo nas suas tentativas de liberação através da harmonização.
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