O NASCIMENTO DE ÍSIS E OSÍRIS
- Renan Batista
- 27 de out. de 2016
- 5 min de leitura

Segundo os antigos egípcios, o mundo surgiu de Nun, um grande oceano primitivo que os sábios identificaram como o rio Nilo, fonte de vida e abundância para todo o Egito. Essa obscura divindade gerou Rá, o supremo deus solar que deu posteriormente ao mundo uma nobre descendência. Dentre esses descendentes estavam Geb e Nut, personificações, respectivamente, da Terra e do céu. Rá, contudo, havia estabelecido desde sempre que Geb e Nut jamais haveriam de se unir para procriar novos deuses, pois ele, como deus soberano, temia a perda do poder absoluto caso essa união viesse a acontecer. Contudo, Rá, pouco previdente, permitira que ambos permanecessem perigosamente próximos um do outro, pois enquanto Geb, personificação masculina da Terra, vivia estirado sobre o leito do mundo, Nut, a deusa celestial, permanecia encurvada acima dele, apoiada apenas nas pontas dos dedos das mãos e dos pés. Durante a longa era em que ambos permaneceram assim, não tiveram outra coisa a fazer senão observarem-se mutuamente. – Nut, ó minha bela irmã! – disse um dia Geb, tomando coragem para dirigir a palavra à deusa que pendia sempiterna sobre si. – Não se aborrece de estar o tempo todo suspensa aí no alto? A deusa afastou os longos e sedosos cabelos que lhe pendiam da cabeça, fazendo com que uma chuva 13 fresca de orvalho descesse sobre o corpo estendido do deus. – Não, pois tenho muitas e belas coisas para observar – disse ela, com os milhares de olhos estrelados que lhe recobriam o rosto a faiscarem vividamente. – Mas já que você toca no assunto, demonstrando sua preocupação, não nego que seria um alívio para minhas doloridas costas se pudesse espichá-las um pouco – completou ela, dando um ligeiro suspiro de dor. Geb, feliz por poder prosseguir a conversa, respondeu assim às palavras da deusa: – Ora, e por que não o faz, se assim manda a sua vontade? – Porque, ao fazê-lo, meu corpo ficaria quase unido ao seu – respondeu a deusa, afetando uma grave preocupação. – Sei eu, porventura, se o descanso de meu corpo não importaria em incômodo para o seu? – Oh, não, estrelada Nut, por certo que não...! – retrucou Geb, numa precipitação que revelava algo mais que a polidez divina. – Se está cansada de permanecer encurvada como um sublime arco, pode, com toda a certeza, espichar os nervos e tendões de seus delgados braços e de suas distendidas coxas. Nenhum desgosto traria à minha pele sentir a tepidez da sua. A deusa fez, então, como Geb dissera, e logo seu corpo negramente aveludado espichou-se, dando alívio às suas costas encurvadas e fazendo com que ao mesmo tempo seu tronco descesse quase ao nível da Terra. Um grande suspiro de alívio brotou dos lábios frescos de Nut. Entretanto, a sensação enorme de alívio fez com que não fosse capaz de perceber que seus seios, naturalmente fartos e tornados ainda 14 mais proeminentes pela força da gravidade, roçassem suas pontas, suavemente, no amplo peito do deus estendido. – Oh, perdão! – disse ela, erguendo-se instintivamente ao sentir pela primeira vez o contato. – Não foi de propósito! – Ora, não foi nada... – disse Geb, um tanto desconcertado também. E assim permaneceram por mais algumas eras – pois naqueles dias primordiais da sedução havia tempo de sobra para a requintada arte da protelação –, até que Nut pediu licença a Geb, outra vez, para abaixar-se “só um tantinho mais”. O deus alegremente acedeu, e Nut desceu ainda mais o seu corpo, até seus seios repousarem francamente sobre o peito rígido de Geb. Desta vez, porém, ela não recuou nem pediu desculpa alguma, pois seus olhos cerrados simulavam um sono de fingida inocência. “Que assim permaneçam”, pensou o deus, tacitamente concordante. “Serão a um só tempo um delicioso prazer e uma amena barreira ao exército rebelado de meus desejos.” Porém, ao sentir o coração da deusa bater de encontro ao seu, percebeu que o escudo macio que os separava se convertera em estímulo, sendo agora um motivo a mais para que se completasse a rebelião nas hostes de seus desejos, solidamente arregimentados e de lanças avidamente enristadas. Nut foi despertada de seu fingido sono ao sentir que havia agora um segundo ponto de contato entre ambos e que não era ela, certamente, quem o 15 patrocinava, já que seu corpo não havia descido um milímetro de encontro à terra. Num gesto que nem mesmo Bastet, a deusa felina, poderia ter igualado, ela saltou para o alto como uma perfeita gata, indo cair de quatro novamente, acima de Geb, com o ventre contraído ao máximo. – Ora, que atrevido...! – exclamou a deusa dos céus, tão rubra que os pássaros começaram a cantar, imaginando que já era o dia que surgia. Geb não conseguiu reter uma gostosa gargalhada, que deixou a deusa desconcertada a ponto de não saber como reagir. Mas o riso dele era, afinal, tão puro e despido de malícia que ela, despindo também suas fingidas suscetibilidades, resolveu soltar livremente as rédeas de seu soberano instinto. A bela Nut desceu inteira sobre Geb e assim permaneceram ambos por onze eras inteiras. A união de Geb e Nut não passou despercebida, e logo um mensageiro foi levar a Rá a funesta nova, mesmo sabendo que lhe provocaria terrível ira. – Malditos traidores! – exclamou o deus, fazendo com que o disco solar que lhe ornamentava a cabeça despedisse assustadoras chispas. – São apenas rumores, sublime divindade... – disse o mensageiro, temeroso de que a ira de Rá extravasasse ali mesmo. (Já naquele tempo, sabiam os mensageiros que não raro terminam como vítimas inocentes dos males que anunciam.) O rosto de Rá assumia, cada vez mais, a forma adunca de um falcão, enquanto seus olhos negros e 16 pequenos como contas também pareciam fulgurar sinistramente. – Silêncio, imbecil! – exclamou o furibundo deus, fechando-se em si mesmo. O mensageiro, sem dar-lhe as costas, retirou-se à maneira prudente dos caranguejos, pois sabia que o deus já começara a planejar sua vingança. “Devo separar esses dois o mais rápido possível!”, pensou Rá. “Como pude ser imprudente a ponto de deixá-los assim tão próximos?” Durante o dia inteiro o deus solar ardeu furiosamente, de tal sorte que o Egito inteiro esteve ameaçado de ser mergulhado em nova e terrível seca. Então, chegando a uma conclusão, decidiu pôr de uma vez o seu plano em ação. – Farei isto pessoalmente! – disse Rá, subindo em sua barca. No mesmo dia, chegou à presença do casal de amantes, que continuavam misturados num gigantesco abraço. – Basta, lúbricos! – disse Rá, dando um grito que ecoou por todo o mundo. Geb e Nut levaram um grande susto. A deusa ergueu-se, temerosa da ira de Rá. – De hoje em diante, ficarão os dois inteiramente separados! – disse o deus, dando à voz o tom solene dos decretos irrecorríveis. – Oh, não! – exclamou a deusa, levando as mãos à cabeça. – Durante o ano todo Chu, seu pai, estará colocado entre você e seu descansado amante, para impedir que ambos voltem a ser um só!
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